GOMAS AÇUCARADAS

GOMAS AÇUCARADAS

segunda-feira, 20 de junho de 2011

O TRABALHADOR E O ANJO


O homem chegou em casa e ralhou com o filho que remexia barro na rua esburacada com água do esgoto que corria a céu aberto por aquelas bandas. Há poucos dias havia retirado a criança da mãe através de uma medida liminar depois de o membro do conselho tutelar ter encontrado a criança em meio a sete pessoas, dentre as quais, estava a mãe da criança, que se reuniram naquela ocasião para fumar maconha e entornar litros de cachaça. Como era recente a presença da criança o homem ainda se adaptava às obrigações de pai: preparava comida, antes de sair, para o almoço do filho; e deixava sempre alguns litros de leite e bolacha de água e sal caso o filho passasse fome. No fim do dia, lavava-lhe as roupas e dava banho no menino. Neste dia entrou em casa logo após a criança correr para dentro, mesmo com as mãos e os joelhos sujos de barro. O homem colocou na cozinha, próximo ao fogão encardido, as ferramentas de trabalho, um embornal onde trazia a marmita com um resto de comida já fria, uma enxada, um folhão e o chapéu, que pendurou num prego colocado na parede para esta finalidade.
- Sua avó chega daqui uma semana, seu moleque! Até lá, vê se se comporta feito homem!
Estirou-se sobre o catre, sujo mesmo, vestindo os andrajos do trabalho e botinas.
-Estou cansado – suspirou. Vê se não me enche o saco!
O homem fechou os olhos lentamente, abriu a boca, soltou os braços alinhados ao corpo, expirou uma lufada curta e abrupta. Não se mexeu mais.
O menino espiou por entre as cortinas, que separava a sala do quarto, a calça puída e suja do pai e as botinas marrons que  ficaram para fora da cama. Ligou a televisão que ficava sobre uma mesinha num canto do cômodo. Assustou-se com o estrondo que  o aparelho deu ao ser ligado. Olhou mais uma vez entre as cortinas e as botinas do pai continuavam na mesma posição.  Abaixou rapidamente um botão para baixo, que sabia, diminuía o volume. E foi mudando os canais girando o maior dos botões que se destacava reinante no canto superior direito do aparelho. Girou duas ou três vezes até que a imagem de um desenho animado desbotado surgiu. O aparelho era em preto e branco.
O menino sentou-se no sofá, e aos poucos, foi deitando-se escorregando lentamente. Virado de lado, com as pernas encolhidas, apoiava a cabeça com a mão direita.  Vez e outra o menino sorria. Chegou a gargalhar em uma das peripécias do desenho. Desviava o olhar e via as botinas do pai, imóveis. Depois de um tempo, de tanto olhar, pensou ver o pai mexer as pernas. E distraiu-se com um pedaço de palha de aço fixada sobre as antenas do aparelho para que melhor fosse sintonizado. O sono veio em seguida. O menino dormiu no sofá mesmo, nem banho tomou. O short e a camisetinha que vestia estavam respingados de lama. Chovia a tempo e a rua estava num barreiro só. Como se adaptava à nova vida, longe da mãe, passava o dia na rua, em frente da casa onde observava outras crianças jogando futebol com uma bola encardida, feita de  meia. E outros dois menores que disputavam uma partida de biroca. O menino correu pela rua o dia todo. Portanto, pegou no sono facilmente.  Acordou com o estrondo de um trovão que ecoou depois que um relâmpago iluminou todo o barraco. O televisor estridulava e o menino abriu os olhos para ver na tela a imagem toda quebrada como se fosse um formigueiro.
Sentou-se no sofá. Bocejou e limpou os olhos com as costas das mãos – os dedos estavam sujos. Olhou para o quarto do pai e na escuridão definiu as botinas para fora do catre. Pulou do sofá e dirigiu-se até o quarto. Passou esbarrando pelas cortinas. A mão esquerda passeando levemente pelo beiral da cama enquanto a contornava e rumava para a própria cama posta ao lado. Subiu com dificuldade em sua cama. Tentou visualizar o rosto do pai na escuridão do quarto. “ Pai” – chamou baixinho. “ Pai” – repetiu sem resposta. Encostou a cabecinha no travesseiro. Continuou observando o pai até que viu um pequeno brilho nos olhos semicerrados e da mucosa pastosa que se alojara no canto da boca aberta. Novamente adormeceu.
Acordou com o sol queimando a telha do barraco. A luz entrava por todas as frestas. Na sala a televisão anunciava as notícias da manhã. A chuva cessara lá fora e o sol quente sugava as últimas poças formadas nos terrenos irregulares. O menino chamou pelo pai. “Pai! Papai! Tô cum fome!” – esperou a resposta. Pulou da cama, aproximando-se do pai e cutucando-lhe o braço com a ponta dos dedos chamou outra vez. “Acorda, papai! Tô cum fome!” Sem resposta dirigiu-se à sala. A repórter apresentava a previsão do tempo: muito calor e pancadas de chuvas isoladas. O menino girou o grande botão da televisão. Várias vezes até que encontrasse um desenho animado. E então foi para cozinha. Debaixo da pia havia uma caixa de leite e pacotes de bolacha. Não havia geladeira. Como não sabia manusear faca ou tesoura, levantou a ponta da caixa de leite e tentou rasgá-la no dente. Não conseguiu abri-la e logo desistiu. O pacote de bolacha era mais fácil. O plástico que o envolvia era mais fino e sempre tinha uma linguetinha onde enroscar o dente e puxar. A caixa não tinha, não. Depois de comer duas bolachas sentou-se no sofá de frente a televisão com a caixa de leite no colo. Enquanto assistia ao desenho roeu um dos cantos da caixa até perfurá-la e dali mamou o leite que vertia devagar, enrolando os cabelos com uma das mãos e os olhos vidrados na animação dos desenhos.
Verteu pouco menos que um terço da caixa de leite. Com olhos na televisão colocou a caixinha no chão de cimento. Levantou-se devagar e voltou-se ao quarto onde estava seu pai.
- Papai, quero fazer cocô! – apoiou as mãozinhas nos braços estirados do homem com as carnes frias à sua frente. Papai?! Virou-se emburrado e saiu do quarto. Geminada à cozinha, separada por uma porta improvisava com ripas, lascas de madeiras e restos de latas abertas e amassadas, estava o banheiro. Pouco mais que um metro quadrado, a latrina ficava quase que embaixo de um chuveiro de lata adaptada em um balde que era suspensa por uma roldana e corda até à altura de um adulto. O menino arriou o calção encardido e agachado evacuou. Olhava as paredes caiadas do banheiro. O piso áspero de cimento. O buraco no chão onde caíam os dejetos. No canto, a água parada providenciava o bolor da parede. Esvaziado, o menino levantou-se, abrupto, suspendendo o calção arriado até às canelas, sem se limpar.
Voltou para o quarto onde estava o pai. Uma pequena fresta na janela por onde um feixe de luz solar passava servia-lhe para espiar a rua. Outros meninos já tomavam conta da rua. Alguns corriam alegres pulando os restos de poças que a chuva formara, e que, agora, o sol secava. Outros jogavam biroca observados por outro, que mais distante, soltava pipa feita em jornal e hastes de bambu. A rua ganhava a vida matinal enquanto o menino, na penumbra do quarto, acompanhava o movimento. Logo enjoou. Virou-se sentado na cama. Uma lagartixa cortou a parede do quarto às pressas. Lembrou-se do que aprendera com o pai. “ Se você cortar o rabo da lagartixa, nasce outro no lugar”. Pensara na lagartixa sem rabo, correndo suspendendo as patas traseiras como o cachorro amarelo machucado que bandeava pelas redondezas da casa onde viveu com sua mãe. Sorriu, olhando para a lagartixa assustada. “Papai, olha o bicho! Papai, vamos brincar?” Deitou-se sobre a cama, olhando  o teto, logo a lagartixa escondeu-se. Ouvia a algazarra na rua. Distante, um caminhão passava. O barulho dos freios a ar chamou-lhe a atenção. O menino imitava-o com os lábios. As mãozinhas seguravam um volante imaginário. E então voltou a adormecer.
Passava do meio-dia quando o menino acordou. Ágil, pulou da cama rumando-se para a porta da sala que dava acesso à rua, mas estava trancada por dentro e a chave sequer lhe passava pela cabeça onde poderia estar. Então foi para a cozinha onde uma porta franqueava-lhe o quintal lamacento; mas estava fechado com uma tramela pesada, encaixada em alças de ferro fixadas à parede. Olhou pelas frestas da porta a imensidão do quintal. Após a chuva, o sol forte trazia vida ao quintal. Passarinhos pousavam para beber água e banhar-se nas poças que logo secariam. Borboletas amarelas passavam unidas a outras num vai e vem aleatório. Retornou ao quarto passando pela caixa de leite que derrubara na noite anterior. O líquido vazara da caixa e escorrera para debaixo do sofá onde o menino se deitava para ver televisão. Nem percebeu o cheiro azedo que o leite coalhado exalava. Aproximou-se do pai convidando-o para sair.
- Papai, vamos brincar lá fora! Parou a chuva.”
Fitou os olhos semicerrados do pai, a boca entreaberta e silenciosa. Do nariz e ouvidos vazavam rubro e espesso os sinais da morte. O menino continuava a tagarelar, ansioso para que o pai levantasse abrupto e, fazendo-lhe cócegas, dissesse:
- Bum! Te peguei, vamos brincar lá fora! Cadê a bola de meia. Pega a bola de meia, fio, vamo jogá!
- Papai, eu vi um monte de borboleta lá fora! Vamo pegá borboleta, papai? Eu gosto mais de ficar aqui com você. Na casa da mãe não pode brincá! Papai, acorda. Papai?! – chamou pela última vez, arfando. Deitou-se ao lado do pai, cruzou os bracinhos. Olhava o teto, a trama de madeira irregular, o telhado de zinco, uma lata e outra fazendo a vez de telha atendendo ao reparo. O calor forte fez o menino transpirar. Ficou ao lado do pai distraindo-se com a trama do telhado. Sentiu sede, mas não pediu ao pai – sabia que não adiantaria – o pai estava muito cansado, precisava dormir. Levantou-se, pulou por sobre o corpo do pai e caiu ao chão. Dirigiu-se devagar para a cozinha. E então um cheiro azedo o incomodou. Arrastou uma cadeira até a pia da cozinha. Subiu sobre a mesa. E como vira o pai fazer outras vezes, encostando a boca na torneira virou a borboleta sobre ela fazendo com que água pura e fresca saísse. Bebeu grandes e rápidos goles na tentativa de acompanhar a vazão da água. Prendeu a respiração a ponto dos olhos lacrimejarem. E então, não podendo mais, sem fôlego e barriga cheia, livrou-se da torneira e respirou exacerbado. Um fedor repugnante o fez enojar-se. Sobre a pia, restos da marmita do pai eram atacados por larvas brancas, aos montes, que dançavam enroscando entre si, como no prato de macarrão que sua mãe costumava, nos domingos, obrigá-lo a comer quando só queria era correr por um campinho improvisado no meio da rua, atrás de uma bola encardida confeccionada com meias velhas. Sentiu imediata repulsa. Desceu da cadeira lentamente e dirigiu-se ao quarto onde o pai estava.  No caminho, passou pela sala, e o fedor azedo coalhado impregnou-se com a fétida marmita, fazendo com que o menino tivesse dificuldade para respirar sem provocar-lhe ânsia de vômito; mesmo porque, no quarto a podridão já atraía enormes pássaros negros que pousavam sobre a casa.
Permaneceu deitado ao lado do pai. Sentiu-se fraco. Há muito não comia. Fez força para não mexer qualquer parte de seu corpo, não tinha vontade e uma força estranha o impedia de mover-se. Os olhos abertos continuavam observando a trama do telhado. E ouvia a algazarra que os grandes pássaros faziam sobre a casa. Não era mais a chuva, nem os meninos correndo atrás de bola que lhe chamava a atenção.  A medida que o tempo passava, mais dificuldade sentia em respirar. Tocou a pele fria do pai e por um momento segurou seu antebraço – rijo e gélido. Os olhos, aos poucos, foram anuveandos. Lágrimas escorriam pelas bochechas pálidas. O ar faltava-lhe nas narinas. O diafragma não mais conseguia baixar permitindo que o oxigênio ganhasse os pulmões. Ouvia a gritaria das gralhas, a ranhura sobre o telhado cinza. Os olhos turvos. A boca seca não permitia dirigir-se ao pai. Nem tinha vontade. Fechou os olhos à medida que o ar ficava mais rarefeito. As gralhas alvoroçavam lá fora. Asas batendo em verdadeiro reboliço. Ouviu uma mulher chamar à porta. Lembrou-se da avó. Mas em meio às lembranças e a balburdia sobre a casa, não mais sabia o que era real e o que era fantasia. O menino fechou os olhos e sequer os abriram quando ouviu um homem gritando, dizendo que iria estourar a porta. E por muitos anos recordava o momento do estrondo que a velha porta de madeira e latas fez ao cair, do choro da avó, igualmente estrondoso, debruçada sobre seu pai e das luzes mágicas que rodeavam sua casa quando nos braços de um homem o levaram para fora.
Pira, 23/01/2010.         

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