GOMAS AÇUCARADAS

GOMAS AÇUCARADAS

quinta-feira, 16 de junho de 2011

O HOMEM DA COBRA


Maria estendia na sacada do sobrado os três colchões mijados de seus filhos. Um galo preguiçoso anunciava tarde o novo dia posto que o sol já queimava o coco dos poucos transeuntes que andavam pela vila. O apito do trem avisava os passageiros de sua aproximação. Ouvia-se o barulho das portas de aço da mercearia que eram elevadas com estrondo. Crianças eram arrastadas por suas mães até o grupo escolar. Senhorinhas, com passos calmos e despreocupados, compravam pães quentes para seus maridos na padaria do Odel, o libanês. Um velho Ford corcel, puxando pelo rabicho uma grande caixa metálica, encostou à beira do meio fio. Todas as luzes refletiam na caixa cegando os curiosos. De longe, um cavalo arredio, retrocedeu três passos quase tombando a charrete. A matilha que cortejava uma cadela no cio se desfez com a chegada luminosa do carro velho e enferrujado. João celeiro olhou desconfiado o rapazola que conduzia o veículo assim que suspendeu a porta metálica da selaria e topou com aquele troço à sua porta. Genésio enchia o carrinho de picolés para mais tarde servir no grupo quando a roda daquela caixa passou lambendo seus calcanhares. Quando virou, foi um susto. Tião, dono da papelaria, gritou para o fundo da casa o nome da mulher. Nena, vem vê uma coisa! E com ela os dois casais de filhos, em escadinha, apareceram à porta do bazar.
 O rapazola com o pequeno cavanhaque desceu do corcel, soltou duas grandes fivelas que abraçavam a grande caixa metálica e abriu o tampo. Lúcio, que trazia uma promissória na mão e uma caneta na orelha, deteve-se diante da caixa. Saíra decidido do armazém a cobrar a cártula. Mas o homem com a enorme caixa metálica o impediu. Parou abrupto o passo. Cruzou os braços e mordeu o dedo indicador atravessado na boca. Elza vinha com passos firmes e rápidos esquecida do destino. Caixa de isopor a tiracolo, ela trazia a injeção de insulina diária que aplicava em Onofre, o dono do bar. Perguntou ao Lúcio o que era aquilo que logo respondeu tratar-se de magia. O Joaquim açougueiro largou a chaira e a faca afiada e atravessou a avenida com o jaleco respingado de sangue. Um grupo de estudantes ficou pelo caminho, mochilas presas às costas.
O estrondo que a enorme tampa metálica fez ao cair, fez Elvira largar a roupa no tanque e correr para a porta da venda, onde seu pai sentando à porta exibia as pernas sendo comidas pelo fogo selvagem, apoiadas em outra cadeira. O que houve, pai? – perguntou Elvira saindo à porta, secando as mãos no avental, no momento em que João, seu irmão, exibindo dentes de ouro no sorriso, trazia a informação. O homem traz uma cobra enorme na caixa. Julinho cortava a avenida em passos rápidos e cegos que conduzia, ziguezagueando, à porta do Firmino português, a tirar-lhe satisfações por conta de uma briga em que seus filhos tiveram no grupo escolar no dia anterior, e que seu filho acabou levando a pior. Floriano deixara pela metade a barba de Waldemar Rolinha ao saírem, curiosos, assim que o rapazola botou a boca no trombone. Com um amplificador de som convidava toda a comunidade para conhecer aquela revolução da medicina, o elixir da juventude, a cura para todos os males, o fim de todas as dores. E limpando a garganta, sonoramente anunciava: o óleo do olho do peixe do Telêmaco. E mostrava um vidrinho onde aquela porção mágica trazia todas as soluções para qualquer problema.
- Se você está velho e as cadeiras não mais te agüentam! O óleo do olho do peixe é a solução. Basta besuntar o óleo pelas ancas e a dor sairá esquecendo-se de você para sempre. E não é só. Seu filho ainda mija na cama. Basta esfregar o óleo do olho do peixe no pipi de seu filho. E eu dou minha mão à palmatória que nunca mais fará xixi na cama.
Ricardo que assistia a tudo, olhos miúdos vidrados na enguia, cochichou a seu irmão.
- Vamos pedir dinheiro ao pai, assim vocês param de mijar na cama – e atravessaram a rua correndo, quase pisando sobre a cadela Rebeca, deitada à porta do açougue. Ao retornarem, dinheiro enrolado na mão, foi logo pedindo um frasco. Telêmaco, aproveitando a oportunidade da venda foi logo dizendo:
- Este menino nunca mais vai mijar na cama!
Um garoto que estava observando tudo sentado no selim da bicicleta perguntou com maldade:
- É para você, Zé? Parar de mijar? – e apontou os colchões expostos na sacada do sobrado, secando ao sol.
- Não! – respondeu sem graça Ricardo –É meu pai, tá com dor nos ombros – e correu para dentro de casa feliz com o emplasto. E desta vez a cadela o acompanhou.
E Telêmaco anunciava os benefícios do óleo do olho do peixe.
-Se você sofre de reumatismo – e apontava o dedo a um senhor, vestido com chapéu branco, que observava quieto todo aquele falatório – basta passar o óleo no lugar da dor e esfregar. Nunca mais sofrerá de reumatismo.
De repente o rapazola se dirigia ao Paulinho, filho do Onofre, o dono do bar, que chegava à tertúlia com passos lentos e ofegantes pela banha que se alojava em seu abdômen e agora escorria para os membros.
- Se você comeu alguma coisa que não lhe caiu bem? Bastam três gotas do óleo do olho do peixe em meio copo d`água e a azia é tirada com a mão.
E as notas iam passando de mão em mão até chegarem às mãos de Telêmaco que de imediato remetia um vidrinho milagroso, que de mão em mão, retornava a quem enviava o dinheiro. E o remédio curava tudo e a todos.
- Se você é vesgo. Tem um olho no gato e outro no peixe. Basta friccionar o óleo do olho do peixe que seus olhos entrarão em órbita. E você, meu amigo, que já não consegue mais dar no coro. Que não acha mais sua senhora atraente. Basta esfregar três vezes ao dia o óleo do olho do peixe nas genitálias que você não vai poder nem olhar perna de mesa.
O povo foi parando por ali. Lúcio esqueceu no bolso a promissória que iria cobrar, com uma caneta equilibrada sobre a orelha. Quando deu por si, o devedor havia se mudado com mala e cuia da vila. E embora especulasse entre a freguesia, ninguém sabia do paradeiro dele, pois ninguém o tinha visto jogar a mudança sobre o caminhãozinho e arredar pé dali.
O libanês planejava ir num pé e voltar no outro. Ver o que se passava ali. Mas distraiu-se e quando se deu conta, tinha comprado três vidrinhos com o remédio que o moço jurara faria sumir todo aquele gás que lhe estufava o bucho e não havia peido e arroto que o aliviasse. E de retorno à padaria encontrou a fornada do meio dia queimada e Lia, sua mulher, esperando-lhe à porta dizendo-lhe palavrões que só eles entendiam.
Genésio vendeu ali mesmo todo o sorvete que colocara no carrinho, a ajudar espantar o calor que o sol do meio dia trazia à aldeia. E também, com o lucro das vendas, comprou o vidrinho ao saber de seu poderoso efeito cicatrizador. A roda da carroça que trazia aquela grande caixa metálica cortou-lhe os calcanhares ao passar de raspão.
Uma das filhas de Onofre veio às pressas lembrar Elza da insulina que devia aplicar em seu pai, pois o homem já caíra tremendo ao chão, enrolando a língua, numa crise que o vidrinho foi capaz de afastar. Antes que chegasse com a caixa de isopor trazendo a seringa boiando na água do gelo derretido, Onofre de joelhos já partilhava os bens e confessara a paternidade de outros seis filhos com outras três mulheres. E só não foi morto naquela ocasião porque mais uma vez Elza o salvara jogando o resto da água fria sobre Jandira, apartando-a do marido como se apartavam os gatos brigando.
E Telêmaco, para finalizar as vendas, ganhando a confiança de quem ainda não comprara o óleo do olho do peixe, denunciou aos quatro ventos o grande segredo do poder reparatório daquele elixir.
- Esta cobra, não é uma cobra comum! Ela foi encontrada por meu avô num manancial ao pé de um vulcão adormecido – e arrematou arregalando os olhos e fazendo proeminente o queixo quadrado, com a barbicha – Este peixe é elétrico! Se seu rádio não funciona porque a pilha acabou, este peixe põe a tocar o seu rádio. Se a bateria de seu automóvel arriou, basta uma ligação direta com o peixe elétrico. Toda esta energia é que traz os poderes curativos deste remédio, que agora todos os senhores podem usar.
- O senhor, venha cá! Já viu um peixe assim?
- Isso é uma cobra!
 - Não! É um peixe! E o senhor já pôs a mão em um peixe assim?
- Não! Claro que não!
- Pois então, experimente!
E ao abaixar, aproximando-se da água onde a enguia assustada nadava de um lado ao outro, foi interrompido rapidamente.  O braço puxado para cima.
- Espere um pouco – disse o moço coçando a barbicha – O senhor não sofre do coração?
- Não, não sofro!
- Pois então o senhor mesmo é o responsável se algum mal lhe acontecer com a forte descarga elétrica que sofrer. E todos aqui é testemunha.
 O homem baixou a mão vagarosamente até a água quando, ao tocar na água, uma leve descarga elétrica e o chicotear do peixe o fez recolher a mão espirrando água em alguns dos presentes.
- Deixe prá lá, antes que você se machuque, vou fazer um experimento! - e segurando dois bastões de aço conectados a um fio, que por sua vez estava ligado a uma lâmpada, baixou os bastões para dentro da caixa e imediatamente a lâmpada se acendeu.
O povo ficou assombrado. Não disse que era magia! Ouviu-se num sussurro que foi seguido de manifestações de repulsa e admiração.
- Deus me livre – disse Nena benzendo-se com um terço na mão.
_ Nossa, o rapaz é mágico!
- Incrível!
- Vai arder no inferno!
Mas no geral, Telêmaco conseguiu vender mais alguns frascos ao mencionar que o poderoso elixir fazia crescer cabelo, matava verruga, sarava conjuntivite. Então colheu logo o dinheiro que chegava voando de mão em mão por sobre as cabeças dos curiosos, socou as notas de qualquer jeito nos bolsos da calça e agora já enchia os da camisa. Bateu a tampa de aço com o mesmo estrondo que fez ao abri-la. Passou um grosso cadeado para que ninguém roubasse seu peixe.
O povo ainda ao redor. E como ninguém mais compraria já que todos traziam na mão, no bolso da calça ou na sacola o vidrinho com o óleo do olho do peixe, Telêmaco entrou e deu a partida no Corcel. Tentou umas três vezes antes que pegasse. E então arrastou para outra cidade a caixa metálica. Aos poucos, a reunião se desfez. Os colchões dos filhos de Maria continuaram expostos ao sol na sacada do sobrado. Paulinho sofreu da constante azia tão logo tomou meio litro de refrigerante e comeu quatro pastéis no desjejum.  Sua mãe havia perdoado seu pai e com isso ganhou mais irmãos. Lúcio emoldurou em um quadro a nota promissória não resgatada. Julinho perdoou a surra que seu filho levou. E nem mesmo chegou a tirar satisfações com o pai do agressor, o português Firmino. Joaquim voltou para o toco a preparar os cortes de carnes, mesmo com as dores insuportáveis que sentia nos ombros. E logo pela manhã seguinte João colocou seu pai sentado na cadeira em frente à venda, as pernas esticadas apoiadas em outra cadeira. E as feridas, agora mais abertas, fritando ao sol.

Piracicaba/SP, 10 de maio de 2010.


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