GOMAS AÇUCARADAS

GOMAS AÇUCARADAS

quarta-feira, 15 de junho de 2011

GOMAS AÇUCARADAS


A cadela estava prenhe. Dormia sob a marquise de um banco. Algumas pessoas da vizinhança traziam alimento para a cachorra. Um pote de margarina com água, grãos de ração pelo chão. Alguém trouxe caixa de papelão e cobertor que serviam de leito. Passava o tempo todo deitada, os mamilos inchando de leite.
O gerente do banco não se conformou com a cachorra deitada à porta. Atrapalhava os clientes, podia morder alguém, prejudicar sua carreira. Enxotou a cadela, que saiu da caixa assustada. Tombou o pote de margarina, mandou varrer os grãos de ração.
A cadela zanzou de um lado para o outro. Ficou arisca com gente. Encontrou, nas proximidades, um bueiro aberto. Entrou. Na madrugada, a bolsa rompeu. Trabalhou até o sol despontar lambendo a cria. Cinco cães condenados à miséria.
Mas um homem viu os dois olhos brilhantes do outro lado da rua, espiando-o pelo rasgo da guia. O que era aquilo? Um bicho?
- Não, uma cadela com seus filhotinhos!  - diz o frentista apoiando na bomba de combustível.
O homem ficou maravilhado. Veja só o instinto materno. Fez do bueiro seu lar. Alardeou a vizinhança. Logo, uma pequena multidão se formou próximo ao bueiro. Trouxeram ração para a cachorra. E no costumeiro pote de margarina, puseram água. Mas a cadela não arredou pé dali. Estava assustada. E quanto mais gente se aproximava, mais se enfiava pelo interior da galeria.
Alguém avisou a imprensa. Repórteres com caneta e bloco em punho tomavam depoimentos. Logo era o prefeito que chegava no local. Carro oficial e comitiva.
- Assim que soubemos, acionamos a defesa civil.
Uma sirene rasgou a cidade. Giroflex ligado. A aglomeração aumenta. Os homens do corpo de bombeiros dispersam os curiosos. A defesa civil demarca o limite com faixas amarelas. Membros das sociedades protetoras dos animais dão entrevistas. Questionam o que vão fazer com o animal. Disputam entre si a intenção de adotar a cadela. Sugerem nomes ao bicho.
Os bombeiros tentam laçar a cadela com um enforcador. Em vão. Mandam comprar carne em algum açougue da vizinhança para atrair a cadela para fora. Um açougueiro doou um pedaço de carne. Por conta do barulho, a cachorra resiste em sair. O prefeito manda quebrar a guia da calçada, escancarar o bueiro: melhor salvar uma vida. Não houve necessidade. No fim da tarde, cansada e faminta, a cadela resolve sair para engolir um pedaço de carne crua, quase cozida no asfalto quente. Pôs o corpo para fora, o bombeiro arisco, a laçou. O público ovacionou aquela tarde heróica de trabalho. Nem perceberam o outro bombeiro que mergulhado com o tronco para dentro do bueiro, retirava com segurança os filhotes da cachorra. Agora não havia mais risco de mordidas.
As autoridades presentes se cumprimentaram. Algum morador do bairro trouxe uma caixa com travesseiros dentro para servir provisoriamente de ninho á cadela e seus filhotes. Um veterinário se ofereceu para examinar os animais. Subiram sobre o resgate do corpo de bombeiros. As autoridades tomaram seus carros. Com sirenes ligadas e piscas alertas acionadas, saíram em carreata, sob aplausos do povo.
Pegaram a rua em sentido ao centro. Na esquina, sentada ao chão, uma mulher negra estendia a mão aos transeuntes. Oferecia gomas açucaradas. Um pote de margarina vazia colhia algumas moedas. No peito murcho, uma criança se aninhava. Os olhos assustados miraram a algazarra, sem entender, enquanto com força, sugava o pouco leite que restava.
Pira, 21 de setembro de 2010. 

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